Começamos no interior. Daquele carro, debaixo da luz fraca do poste, da lua crescente do final de maio. Fatigado pelos fatos, passo à essência. Gostavam-se. Pouco tempo para o amor; apenas o primeiro encontro. Apenas a primeira aproximação. Apenas o primeiro indício de colisão.
Agora, meses — ou anos, décadas, eternidades, sofríveis eternidades — depois, um dos dois precisa de banhos frios ao findar do dia. Para acordar; perceber que acabou. Doem-lhe as verdades que sussurra ao pé da própria consciência. Afoga as próprias ilusões no ralo porque já não há álcool o bastante, então, sofre em resignação debaixo do chuveiro — também ele, vejam só — impiedoso.
O polo ativo não sente a falta daquele que já não sabe sequer quem é. Até já namorou. De novo, outra vez, outra mentira bem contada. Já o outro se esqueceu de ser, de ter, de possuir. Esqueceu-se de como é estar vivo, sentir o ar nos pulmões, as mentiras na cabeça e o chão nos pés sem que ouça, dentro de si, nas nauseantes entranhas de ectoplasma da própria alma, que tudo é banal, que tudo passa, que tudo é fraco — espanto —; faz mal.
Mas finge se importar, e é por fingir carinho que o outro ainda junta-se aos seus pés, mendigando afeto. Ama-se incompletamente, lucra com palavras que organiza com amadorismo infantil. Corrigem-me neste exato momento.
Incapaz de superar o que resta diminuído, ainda o ama. Em silêncio. Quando fala, se odeia. Sente falta das tardes de sábado em que passava em seu colo, carente de abraços e de palavras tão mornas quanto. Sente falta de ser, de ser o que sempre fora, de ser saudade na distância, explosão na proximidade e o aperto incontido do peito. Sente falta da emoção. Não de senti-la, mas de sê-la.
E agora, de joelhos — ainda no banho —, aperta o próprio seio. O esquerdo. Deseja arrancá-lo, triturá-lo com as unhas e, por fim, afogá-lo nas próprias lágrimas mensais. As próprias mandíbulas, retesadas, doem. A própria existência, estática, machuca.
Por fim, é apaixonado pela imagem do que não vai voltar a ser. Pelos sábados, pelas noites, pelos cigarros que nunca fumou, pelo perfume caro, pelos lençóis macios, pelas conversas francas. É apaixonado. Nas ilusões faz uma pausa. Estas ele ama. E agora ama apenas o que não vai voltar a ser, tal como a luz das estrelas que há muito não me habitam, mas ainda me massacram com seu brilho.
Delicioso de ler esse seu texto, impressionante como a combinação das palavras ficou atraente. E é exatamente isso, nos prendemos a um passado glorioso, mas me pergunto até que ponto idealizamos esse passado, o vestimos de uma honra que, quando o vivíamos, não era perceptível. Acredito que nossa mente teima um pouco em dotar de arte nossas memórias.
Um abraço e parabéns!
Excelente isso que você falou, Cristiano. “A mente teima um pouco em dotar de arte nossas memórias”. Triste, mas verdadeiro (é assustadora a frequência com que digo isso ultimamente). Se me permite: visitei seu blog e AMEI o layout e as fotografias! Cara, você é realmente um excelente fotógrafo e escritor idem (mas me reservarei a tecer comentários sobre isso em seu próprio blog). Obrigado por me acompanhar, e volte sempre!